ROBERTA DE CÁSSIA
ASSESSORIA DE IMPRENSA SINDIMED-MT
Por vezes, a crueldade se veste de legalidade. Usa terno, gravata, carimbos oficiais. Fala em “adequação normativa”, em “conformidade legal”, em “responsabilidade fiscal”. E assim, com a frieza de quem assina uma planilha, decide-se pela penúria de centenas de famílias.
Em Cuiabá, médicos e servidores da saúde acabam de descobrir, pela imprensa oficial, porque o diálogo parece ser artigo de luxo nesta república, que suas remunerações serão drasticamente reduzidas.
O adicional de insalubridade, pago há mais de uma década de uma determinada forma, será “corrigido”. Corrigido. Que palavra elegante para descrever o ato de esvaziar os bolsos de quem trabalha respirando tuberculose, atendendo pacientes com doenças infectocontagiosas, suportando jornadas extenuantes em unidades de saúde que mais parecem cenários de guerra.
A justificativa? Adequação à lei. Como se a lei fosse um ente abstrato, descolado da realidade, indiferente ao fato de que pessoas organizaram suas vidas — pagaram escolas dos filhos, assumiram financiamentos, cuidaram de pais idosos — confiando que o Estado, aquele mesmo que lhes exige dedicação e sacrifício, manteria minimamente sua palavra.
A Assimetria da Dor
O que mais indigna nesta história não é apenas a redução em si, mas a seletividade cirúrgica da penúria. Enquanto médicos que atendem em condições precárias terão seus vencimentos cortados sem cerimônia, sem transição, sem um único real de compensação, outras categorias — ah, outras categorias! — seguem blindadas.
Os mesmos órgãos que agora recomendam, exigem, determinam a redução dos vencimentos dos servidores da saúde preservam, para si mesmos, não apenas o subsídio constitucional, mas um generoso cardápio de auxílios, indenizações e vantagens. Férias não gozadas? Indenizadas. Moradia? Auxílio. Alimentação? Auxílio. Saúde? Auxílio. E por aí vai, numa coreografia de privilégios que faria inveja a qualquer monarca absolutista.
Existe uma mensagem implícita, mas cristalina, nesta assimetria: há cidadãos de primeira classe, aqueles que legislam e decidem em causa própria, que fiscalizam, e há os demais. Os médicos, enfermeiros, dentistas, agentes comunitários de saúde pertencem, nesta lógica perversa, à segunda categoria. Podem ser sacrificados no altar do ajuste fiscal. Contra eles o rigor da interpretação fria da lei, como abstração genérica que paira acima das família endividadas. Afinal, quem são eles senão meros executores de políticas públicas?
O Estado Esquizofrênico
A esquizofrenia institucional brasileira revela-se em sua forma mais grotesca quando o mesmo município que corta vencimentos de quem salva vidas aumenta, concomitantemente, a remuneração de cargos comissionados. Traduzindo do burocratês para o português claro: tira-se de quem trabalha na linha de frente, em condições insalubres, para dar a quem ocupa cadeiras políticas, muitas vezes sem qualquer qualificação técnica.
Não bastasse, há um histórico que faria corar qualquer gestor minimamente comprometido com a legalidade: gratificações criadas por simples portaria, plantões extras pagos sem base legal, uma “folha paralela”.
Irregularidades que, curiosamente, foram são toleradas por anos a fio pelos órgãos de controle. Mas quando se trata de retirar direitos consolidados de servidores essenciais, ah, aí a lei deve ser aplicada com o rigor de um algoz medieval.
Por Que Ninguém Mais Respeita as Instituições
E depois nos perguntamos, entre cafés e conversas de botequim, por que a população brasileira perdeu o respeito pelas instituições públicas. Por que há tanto cinismo, tanta descrença, tanto desprezo pelo discurso oficial.
A resposta está aqui, escancarada, nesta e em mil outras histórias iguais: porque as instituições aplicam duas medidas, dois pesos, duas varas. Uma para os seus, outra para os demais. Porque pregam austeridade para os outros enquanto nadam em benesses. Porque falam em “responsabilidade fiscal” enquanto mantêm penduricalhos que custariam o orçamento de pequenos municípios.
Como respeitar um Tribunal que exige cortes na saúde mas preserva seus próprios supersalários? Como confiar num Ministério Público que recomenda redução de vencimentos de médicos mas blinda seus membros de qualquer decesso? Como acreditar num Estado que, com uma mão, aplaude os heróis da pandemia e, com a outra, esvazia seus contracheques?
A Crônica de um Desrespeito Anunciado
Há algo profundamente imoral, e uso esta palavra pesada conscientemente, em alterar, de forma abrupta, a remuneração de quem há mais de dez anos planeja sua vida financeira baseado numa prática consolidada. Não se trata de defender ilegalidades. Trata-se de reconhecer que pessoas não são números numa planilha. Que por trás de cada contracheque reduzido há um filho que terá que mudar de escola, um idoso que ficará sem medicação, uma família inteira jogada na insegurança.
E se, de fato, havia irregularidade no pagamento, a solução civilizada, aquela que um Estado minimamente responsável adotaria, seria a transição gradual, a negociação transparente, a instituição de medidas compensatórias. Mas civilidade, ao que parece, é mercadoria rara neste Brasil de desigualdades institucionalizadas.
E o mais absurdo, neste Estado Democrático da Desigualdade promovida pelo Estado, é pensar que, uma empresa da iniciativa privada, jamais poderia fazer isso, pois na CLT vantagens pagas por mais de dez anos, são incorporadas aos salários.
O Silêncio Cúmplice
O mais ensurdecedor nesta história toda, porém, é o silêncio. O silêncio de quem poderia, deveria intervir. O silêncio dos que se dizem defensores do interesse público, mas que, diante da violação escancarada de direitos de trabalhadores essenciais, preferem a inação.
Porque, no fundo, todos sabem: mexer com médicos, enfermeiros, com a ralé que mantém o sistema público de saúde funcionando, não tem custo político. Não rende manchete, não mobiliza opinião pública, não ameaça carreiras. Diferente seria se a medida atingisse os próprios palácios do poder.
E assim, entre silêncios cúmplices e canetadas cruéis, vai se construindo o deserto de credibilidade em que vivemos. Cada injustiça institucional é uma pedra a mais no muro da desconfiança. Cada privilégio preservado às custas do sacrifício alheio é mais um tijolo na fortaleza do cinismo.
O Preço da Descrença
Ao final, todos pagaremos o preço desta hipocrisia sistêmica. Porque quando médicos deixam a rede pública, e deixarão, podem apostar, quem sofrerá será a população mais pobre, aquela que depende do SUS. Quando a qualidade do serviço desabar, e desabará, não serão os magistrados, promotores ou conselheiros que enfrentarão filas intermináveis nas UPAs. Serão os mesmos de sempre: os esquecidos, os invisíveis, os que não têm voz.
E aí, quando o sistema entrar em colapso, virão os discursos inflamados sobre a “crise da saúde pública”, sobre a “necessidade de mais investimentos”, sobre o “compromisso com o povo”. Discursos vazios, proferidos pelos mesmos que hoje, com suas canetadas insensíveis, plantam as sementes do caos que fingirão lamentar amanhã.
Enquanto isso, em Cuiabá, médicos organizam assembleias, sindicatos protestam, famílias refazem orçamentos apertados. A vida segue, como sempre seguiu para quem não tem o privilégio da blindagem institucional, não pode legislar em causa própria.
E o Brasil, este país de contrastes obscenos, segue sua marcha inexorável rumo ao abismo da desigualdade, embalado pela sinfonia hipócrita de quem prega sacrifícios que jamais fará.
A caneta que assina estes atos administrativos deveria, ao menos, ter a decência de sangrar. Mas canetas, assim como certos gestores, não têm coração. E talvez seja exatamente por isso que estejamos onde estamos.
Cuiabá, outubro de 2025.
Adeildo Lucena- presidente do Sindimed-MT e
Bruno Álvares- advogado do escritório Vaucher e Álvares e assessor jurídico do Sindimed-MT